O Damas entrou na minha vida na tarde de 25 de Março de 1984. Foi o dia em que em jogo a contar para a 23.ª jornada do Nacional da Primeira Divisão o Sporting bateu o Portimonense por 6-0 em Portimão, um jogo cujo relato ouvi com o meu avô, como de costume. Por essa altura o Damas era guarda-redes do Portimonense e eu ainda me lembro da maneira como a crónica da “Bola” descreveu a marcha do marcador: “na primeira parte, 0-1; na segunda parte, 0-5; na terceira parte (se houvesse), seria um chorrilho de golos uns atrás dos outros”. Tal fora a progressão do marcador e a melhoria da exibição do Sporting à medida que o jogo se aproximava do final.
À partida, tratava-se apenas de uma boa vitória do Sporting em terreno alheio, com o pormenor de cinco dos golos terem sido marcados na segunda parte. Porém, depois do jogo comecei a ouvir uns comentários que me chamaram a atenção. Afinal, parecia que o Damas jogava no Portimonense, mas na verdade era nosso, era do Sporting. Ouvi dizer que o coração falara mais alto, ouvi dizer que o Damas dera uma ajuda ao “seu” Sporting. Isso intrigou-me. Para mim, os jogadores do Sporting eram os que faziam parte do plantel do Sporting. Haver um jogador “do Sporting” a jogar no Portimonense era uma coisa absolutamente incompreensível.
Não creio que o Damas tenha feito “um jeitinho” ao Sporting nessa já longínqua tarde. Terá sido, apenas, um dia complicado, com o Portimonense a aguentar enquanto pôde e a “ir-se abaixo” quando o Sporting começou a marcar golos. Mas o que eu desconhecia na altura era a longa história de amor entre o Damas e o Sporting, entre o Damas e os sportinguistas. Não sabia que ele se tinha “feito” no Sporting, que tinha ido para Alvalade com 14 anos, que fora o inquilino indiscutível da nossa baliza anos a fio, incluindo o ano em que eu próprio nascera e no qual o Sporting fizera a dobradinha. Aliás, penso que nessa altura eu nem sabia que o Sporting ganhara o campeonato e a taça no meu ano natal. E por isso não compreendi a alegria e as expectativas quando, no final da época de 1983/84, se concretizou a transferência do Damas para o Sporting. O Damas voltou. O Damas está de regresso a casa. Com o Damas é que vai ser. O Damas.
Tudo isto por um guarda-redes? Um guarda-redes pode ser bom, mas quem as crianças idolatram são os avançados. O “tridente” Manuel Fernandes/ Jordão/ Oliveira, isso sim é que eram ídolos. Agora um guarda-redes? E porquê este fascínio pelo Damas?
O que não sabia, aprendi. Aprendi quem era “o Damas” e o que ele significava e porque é que os sportinguistas se deviam pôr em sentido cada vez que o nome dele é pronunciado.
Vi-o jogar e defender e, por vezes, fazer o papel do tal miúdo holandês que impediu a inundação pondo o dedo no buraco que havia no dique, quando tinha que suprir as deficiências do resto da equipa na tenebrosa segunda metade dos anos oitenta. Podia não haver uma grande equipa do Sporting. Mas havia grandes Sportinguistas na equipa. Como o Manuel Fernandes. Ou o Damas.
O Damas acabou a carreira, mas nunca nos deixou. Fez parte da grande dinastia de guarda-redes do Sporting que incluíra, antes dele, Azevedo, Carlos Gomes e Carvalho, mas não era só isso. O Damas, como diriam os ingleses, sangrava verde e branco. Não se podia conceber o Sporting sem o Damas. Ou vice-versa.
O Damas ficou doente. Essa doença senti-a como se fosse a de um familiar ou de um amigo. Os adeptos podem ter muitos defeitos, mas nunca faltam à gratidão para com quem serviu o seu clube leal e dedicadamente. Nunca deixam de se afligir e se alegrar com o que vai acontecendo aos que foram os seus ídolos, de infância, de juventude, de idade adulta. Ou mesmo com o que sucede ou sucedeu aos que jogaram em tempos idos e que só conhecem pela sua fama. Ainda hoje me entristeço quando me lembro, por exemplo, que o Peyroteo, esse homem forte e poderoso que reinava nos campos de futebol como um colosso, acabou a sua vida amputado e confinado a uma cadeira de rodas. E o Peyroteo deixou de jogar décadas antes de eu nascer e quando morreu eu era uma criança.
O Damas morreu. Eu digo-vos que a sua morte seria sempre prematura, mesmo que ele tivesse vivido noventa anos. Mas desgraçadamente foi prematura demais, veio pouco antes dele fazer 56 anos. Todos o homenagearam, os sportinguistas, os não-sportinguistas, os antigos colegas e os antigos adversários. Os jornais apareceram cheios de histórias. Algumas, claro, sobre as suas proezas futebolísticas. Outras sobre a sua vida fora dos relvados. Foi-nos lembrado (como se nós precisássemos de ser lembrados) que o nosso antigo guarda-redes fora também um homem exemplar, generoso e bom, capaz até de convidar um sem-abrigo para a sua mesa, para lhe dar a provar uma posta de pescada. Um homem afável, modesto, que vivera a sua doença com a mesma dignidade e coragem de sempre.
Infelizmente, também foi insultado. Um canalha qualquer que trabalha na televisão e que provavelmente se deve masturbar enquanto olha para fotografias do Luís Filipe Vieira e da Águia Vitória escolheu, para acompanhar a notícia da morte do Damas, imagens em que ele se via a sofrer golos do Benfica e a fazer faltas sobre jogadores do Benfica que por sua vez davam em livres que davam em mais golos do Benfica. Enfim, uma coisa “abaixo de cão”, que se calhar nem é digna do nosso desprezo. Se tiverem interesse em saber a opinião de um benfiquista sobre o Damas, mais vale lembrarem-se do que disse uma vez o Eusébio. Perguntaram-lhe qual a sua melhor memória do velho Alvalade e ele não falou em golos que tivesse marcado, nem em vitórias do Benfica. Falou numa defesa. Numa monumental defesa do Damas que se sobrepunha a todas as outras recordações. Falou quem sabe.
Chegou o dia em que o Sporting jogou em Alvalade (o novo) pela primeira vez depois da morte do Damas. Eu estava lá, no lugar que ocupo desde a inauguração do Estádio. Curiosamente, também estava em Alvalade (o velho) no dia em que o minuto de silêncio foi preenchido com aplausos pela primeira vez, creio que em qualquer estádio português. Foi na homenagem ao Travassos. Lembro-me bem, a iniciativa partiu da Juve Leo, a mensagem foi transmitida por megafone: “vamos aplaudir o nosso amigo Travassos”. Quem estava lá não se deve ter esquecido. Nem que seja por ter participado da última ovação tributada ao querido Zé da Europa num jogo do Sporting.
Quando chegou o minuto de silêncio pelo Damas, já todos sabíamos que Alvalade iria abaixo com aplausos. O que não sabíamos à partida (embora o pudéssemos ter adivinhado) é que não nos chegaria um minuto. Pelo contrário, quando o árbitro apitou no fim desse minuto e os jogadores se dispuseram a começar a partida, os aplausos continuaram. Se a memória ou a emoção não me atraiçoam, até aumentaram de intensidade. O árbitro ficou confuso, hesitou e só depois apitou para dar início ao jogo. Sempre sob uma ovação estrondosa, que ainda durou mais algum tempo. Agora compreendo que quisemos que aquela homenagem fosse mais poderosa, mais memorável, mas sentida do que as outras. Talvez porque o Damas foi levado cedo demais. Talvez pela injustiça da sua doença, sofrimento e morte. Talvez porque, como bons sportinguistas, nunca o esqueceremos, e ensinaremos as gerações futuras a nunca o esquecer. Tal como outros (que em muitos casos também já partiram) nos ensinaram a honrar a memória de Stromp e Hilário, Pireza e Azevedo, Yazalde e Morais, Jesus Correia, Vasques, Peyroteo, Travassos e Albano.
O nosso gesto não passou despercebido. O cronista da “Bola” compreendeu o que se passara e deu tons épicos ao seu relato, que apareceu no jornal do dia seguinte. “O Povo”, escreveu ele, não se quis limitar a um minuto e “mandou” que a homenagem durasse mais do que o que vem estipulado nos regulamentos.
E qual é a moral desta história (que temo que se esteja a tornar demasiadamente sentimental)? Há sessenta ou setenta anos o guarda-redes do Celtic John Thompson chocou com o avançado do Rangers Sam English e sofreu tais lesões que morreu. Diz-se que enquanto o levavam para fora do campo, estando prestes a perder o conhecimento, lançou um último olhar para a sua baliza, como se se perguntasse quem a defenderia a partir dali. Desde então que os adeptos do Celtic cantam em sua homenagem uma das mais belas canções jamais criadas no mundo do futebol, aquela que contém os versos “So come all you Glasgow Celtic/ Stand up and play the game/ For between your posts there stands a ghost/ Johnny Thompson is his name”. Agrada-me pensar que sempre que uma equipa do Sporting entrar em campo, seja onde for, o Damas estará presente entre os nossos postes, não para os assombrar, mas para proteger quem quer que ocupe um lugar que, de certa maneira, ainda é e sempre será seu de direito.
© Pireza 2008